No seu “Livro do Fantasma”, Alejandro Dolina
associa a história da areia à uma das lendas da criação do povo árabe.
Diz ele que, assim que terminou de construir o
mundo, um dos anjos advertiu o Todo-Poderoso que esquecera de colocar areia na
Terra; grave defeito, se considerarmos que os seres humanos estariam privados
para sempre de caminhar junto aos mares, massageando seus pés cansados e
sentindo o contacto com o chão.
Além disso, o fundo dos rios seria sempre ríspido e pedregoso, os
arquitetos não poderiam usar um material indispensável, as pegadas dos
namorados seriam invisíveis; disposto a remediar seu esquecimento, Deus enviou
o Arcanjo Gabriel com uma enorme bolsa, para que derramasse areia em todos os
lugares que fosse necessário.
Gabriel fez as praias, o leito dos rios, e quando voltava para o céu
trazendo o material que havia sobrado, o Inimigo – sempre atento, sempre
disposto a estragar a obra do Todo-Poderoso – conseguiu fazer um furo na bolsa,
que arrebentou, derramando todo o seu conteúdo. Isso aconteceu no lugar que é
hoje a Arábia, e quase toda a região se transformou num imenso deserto.
Gabriel,
desolado, foi pedir desculpas ao Senhor, por ter deixado que o Inimigo se
aproximasse sem ser visto. E Deus, em Sua infinita sabedoria, resolveu
recompensar o povo árabe pelo erro involuntário do seu mensageiro.
Criou para eles um céu cheio de estrelas, como
não existe em nenhum outro lugar do mundo, para que sempre olhassem para o
alto.
Criou o turbante, que – debaixo do sol do
deserto – é muito mais valioso que uma coroa.
Criou a tenda, permitindo que as pessoas se
movessem de um lugar para o outro, sempre tendo novas paisagens ao redor, e sem
as obrigações aborrecidas de manutenção de palácios.
Ensinou o povo a forjar o melhor aço para a
espada. Criou o camelo. Desenvolveu a melhor raça de cavalos.
E lhe deu algo mais precioso que estas e todas
as outras coisas juntas: a palavra, o verdadeiro ouro dos árabes. Enquanto os
outros povos modelavam os metais e as pedras, os povos da Arábia aprendiam a
modelar o verbo.
Ali, o poeta passou a ser sacerdote, juiz,
médico, chefe dos beduínos. Seus versos possuem poder: podem trazer alegria,
tristeza, saudade. Podem desencadear a vingança e a guerra, unir os amantes,
reproduzir o canto dos pássaros.
E conclui Alejandro Dolina:
“Os erros de Deus, como os de grandes artistas,
ou dos verdadeiros enamorados, desencadeiam tantas compensações felizes, que as
vezes vale a pena deseja-los”.
Paulo Coelho