O que é JustiçaReflexões Maçônicas
Michael Sandel [1], filósofo de Harvard, inicia seu livro “Justiça: o que é fazer a coisa certa?”, dando o seguinte exemplo:
Há um veículo desgovernado que está prestes a
atropelar e matar um grupo de quatro pessoas. A única alternativa do motorista
é virar o volante para a direita, o que acarreta, necessariamente, a morte de
uma pessoa.
Ao
questionar para o auditório o que cada um faria, parece prevalecer a opinião de
que é melhor matar apenas uma pessoa do que matar quatro.
Nesse
exemplo, contudo, a conclusão anterior de que é melhor morrer uma pessoa do que
quatro começa a ser questionada.
Mais
adiante, o autor relata uma situação em que há quatro doentes em um hospital
esperando um transplante, sem o qual eles irão falecer. Em uma sala ao lado, há
um jovem cochilando, que é saudável e doador compatível. Novamente o autor
questiona se seria melhor matar esse jovem para retirar seus órgãos e salvar as
quatro pessoas.
Esses
exemplos ainda podem ser alterados. No primeiro exemplo, poder-se-ia trazer
qualidades para as pessoas, ou seja, descrever que o grupo de quatro pessoas
tem determinadas qualidades e o indivíduo sozinho tem outras. Assim, a
conclusão poderia mudar, conforme fossem crianças, trabalhadores, criminosos,
moribundos etc. [2].
Muitos
exemplos poderiam ser dados e muitos paradoxos levantados. Em geral veríamos
uma dicotomia básica na qual buscaríamos o máximo de bem com o mínimo de mal (uma
visão mais utilitarista como preconiza Bentham [3])
ou entendendo que uma regra sempre deve ser cumprida (seguindo a visão
moralista de Kant [4]).
Mas talvez a lei natural máxima seja a visão taoísta do equilíbrio, do balanço
que faz o universo se mover; sem o qual acreditaríamos em uma
verdade absoluta, em uma solução padrão para todos os problemas.
Da
mesma forma, segundo Aristóteles, “a virtude (quesito essencial para a justiça)
é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e
paixões, e consistente numa mediana, isto é, a mediana relativa a nós, que é
determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria
prática.” Prossegue o filósofo dizendo que “é um meio-termo entre dois vícios,
um por excesso e outro por falta...”
Mas será que são apenas dois elementos a serem considerados? Anaximandro [5], filósofo grego, entende que há uma certa proporção de fogo, terra, água e ar em tudo no universo. Cada um desses elementos tenta perpetuamente aumentar o seu império. Existe, no entanto, uma lei natural, a Justiça, a qual é responsável pela manutenção do balanço, conservando os elementos dentro dos limites eternamente estabelecidos.
O homem moderno usualmente rejeita estes conceitos como
anacrônicos, mas o iniciado pode, à luz do simbolismo maçônico, avaliar esta
lição da sabedoria antiga. Ao considerarmos a Justiça como a lei que rege as
quatro essências do mundo material, o quaternário, consideramo-la como uma
manifestação própria da quintessência, condição do equilíbrio universal,
manifestação da lei maior da natureza [6].
Assim,
a justiça traz como requisito a sabedoria, pois demanda conhecimento e
equilíbrio. A severidade não pode sobrepor ao perdão, nem o perdão se reverter
em impunidade. Devemos nos lembrar que, ao lado do “olho por olho, dente por
dente”, temos também o ensinamento do Cristo “mostra-lhe a outra face”.
Sob
esta perspectiva ser justo não é tratar a todos exatamente iguais, mas
diferenciá-los segundo suas particularidades, como nos ensinou o mestre Salomão, no caso do bebê com duas mães (Reis 9,16-23). Em outras palavras é necessário conhecer todas
as vertentes da questão em tela.
Outra
reflexão interessante pode ser tirada de um conto de Sun Tzu em "A Arte da Guerra." Um príncipe estava reocupando um território tomado por seus inimigos. Como o
povo que lá estava era seu povo, ele havia proibido terminantemente os saques sob
pena de morte. Quando seu cavalo se descontrola e destrói o milharal de um
pequeno agricultor, ele passa o comando para seu General e está prestes a se
matar. Acaba sendo interrompido e convencido a apenas raspar a cabeça para mostrar
que a lei também valia para ele.
Neste
conto, Sun Tzu [10]
falava da disciplina e mostrava que ela depende da justiça do comandante e que
para ser justa, uma regra tem que ser universal.
Portanto, o aplicador da justiça, seja ele príncipe, juiz ou simplesmente
um chefe, não pode estar acima da lei, atribuindo mais uma vez à Justiça uma
propriedade universal e divina. Gaston Courtois [11],
em seu livro “A Arte de Ser Chefe”, já nos lembra que o chefe justo deve respeitar a hierarquia, reconhecer seus erros e manter a retidão; nos
ratificando que o aplicador da justiça deve ser exigente consigo mesmo ou não
será justo já de saída.
Temos
que considerar ainda, que a justiça nos fala não somente de um veredicto, mas
de uma sentença. Como exemplo, tomemos uma
pessoa que furtou uma galinha. Certamente não seria justo condená-la à morte
por tortura. Como vemos, a justiça também nos fala de intensidade. A justiça
não é vingança! A justiça deve buscar reparar o mal que foi feito (enfoque
civil), punir a atitude incorreta (efeito educativo) e evitar a reincidência
dos contumazes (efeito protetivo).
Há quem diga que ser justo é seguir a lei. Mas será que somente isso basta? Será que as leis são sempre justas? Lembremos que o holocausto judeu foi feito pela lei; que as “casas de conforto” do governo de ocupação japonês também eram legais em seu contexto de espaço e tempo.
Segundo Thersimacus,
um filósofo grego, só existe um princípio de Justiça: o interesse do poder mais
forte. Segundo esta visão, ainda sustentada por muitos em nossos dias,
injustiça para os mais fracos é desobedecer aos interesses dos poderosos. Mesmo
hoje em dia, governos muçulmanos que sejam radicais na aplicação da Xaria [12]
ainda condenam pessoas à chibatadas, perda de membros ou mesmo morte por
apedrejamento. Será que estas leis são
justas?
Tomemos algo mais simples como a lei de cotas em nosso país; ela é justa? Cabe lembrar que já colocamos aqui que a verdadeira justiça vem de Deus. Não “um” Deus, mas “O” Deus. Todavia, as leis são feitas segundo um conjunto de preceitos morais e éticos reflexo dos valores de cada civilização e cultura.
Com isso, toda a
legislação tem que mudar para refletir a evolução (espera-se) moral daquele
povo. Todas elas podem ser éticas no momento de sua confecção, mas fadadas a
caducarem à medida que aquele povo evolui. Mas não há, então, a justiça absoluta
e definitiva? Na visão deste irmão há sim; todavia ela está além de nosso
estado hoje; devemos buscá-la sempre, mas sabendo que não chegaremos lá.
Em
nosso âmbito maçônico a preocupação com a igualdade e a justiça está presente
desde as origens. Desde as constituições, passando pelo manuscrito régio e
plasmada nos Landmarks a justiça é um desejo presente até hoje na fala final de
todo o Or.’. de loja. Ser maçom é buscar ser justo e perfeito.
O
rei Salomão, inicialmente, tomara como modelo jurídico toda a legislação
deixada por Moisés ampliando-a caso a caso, de conformidade com o seu conceito
pessoal, já que era, graças à graça divina, um homem pleno de sabedoria. Lemos no
Salmo 11 “Porque o Senhor é Justo e ama a Justiça; o seu rosto está voltado
para os retos”. O conceito de Justiça hebreu é um conceito religioso, sendo o
alicerce da Justiça, que é o Direito, a própria “pessoa” de Jeová.
Como vemos, já naquele contexto a justiça de Salomão era amparada na sabedoria e na fé. Entretanto, consoante com a evolução cultural que falamos. esta é diferente da justiça do Novo Testamento. Lá se vê em Mateus 7,1-5 “Não julgueis, para que não sejais julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós. E por que reparas tu no argueiro que está nos olhos de teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então, cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão”.
Observa-se neste ponto uma justiça mais caridosa e igualitária. Cabe-nos desta forma buscar o significado
universal e eterno desta sabedoria, pois ela também reflete uma situação
específica em seu tempo e espaço; do contrário teríamos de seguir até hoje a
lei mosaica codificada em Números e Deuteronômio.
Ao longo deste pequeno trabalho, abordamos vários pontos pertinentes ao conceito de Justiça, sem ter conseguido abarcar toda a sua complexidade. Após estas reflexões, entendo que a Justiça é como a verdadeira Sabedoria... um ideal. Como nos dizia Teilhard de Chardin [14] ao nos falar da espiral eterna da evolução; assim é com a busca da Justiça; vamos evoluir e melhorar eternamente sem jamais chegar a um fim.
A Justiça é uma caminhada, não um lugar ao qual vamos chegar. É a busca por educar, punir, proteger, compensar, equilibrar etc. Como reflexo de nossa moral ela não é e nem pode ser travada, fossilizada; tem que evoluir em busca do religare; do nosso verdadeiro reencontro com a Moral e a Justiça do GADU.
Paulo Maurício M. Magalhães - MM - MRA - FRC
REFERÊNCIAS
[1] Michael J. Sandel (1953) é um filósofo, escritor, professor
universitário, ensaísta, conferencista e palestrante estadunidense,[1] que ficou reconhecido internacionalmente pelo seus livros Justiça
- O que é fazer a coisa certa? (2010) e Liberalismo
e os limites da Justiça (1982). Seu mais
recente livro chama-se O
que o dinheiro não compra - os limites morais do mercado (2012).
[2] Do Trabalho “uma noção de justiça” por
Leandro Sarai CIM 263809 disponível na rede GOSP
[3] Jeremy Bentham (1748 —1832) foi filósofo, jurista e um dos últimos iluministas a propor a construção de um sistema de filosofia
moral, não apenas formal e especulativa, mas com a preocupação radical de
alcançar uma solução a prática exercida pela sociedade de sua época. As
propostas têm, portanto, caráter filosófico, reformador, e sistemático.
[4] Immanuel Kant (1724 —1804) foi um filósofo prussiano. Amplamente considerado como o principal
filósofo da era moderna, Kant operou, na epistemologia, uma síntese entre o racionalismo continental, e a tradição empírica inglesa. Kant é famoso sobretudo pela elaboração
do denominado idealismo transcendental.
[5] Anaximandro (a.C.610 — 546
a.C.[1])
foi um geógrafo, matemático, astrônomo, político e filósofo pré-Socrático; discípulo de Tales, seguiu a escola jônica. Os relatos doxográficos nos dão conta
de que escreveu um livro intitulado "Sobre a Natureza"; contudo, essa
obra se perdeu.
[6] Trabalho “A justiça” do Ir
Carlos Tsukada disponível na rede GOSP
[7] Jean-Jacques Rousseau, (1712 —1778), foi um importante filósofo, teórico
político, escritor e compositor autodidata suíço, um dos principais filósofos do iluminismo. Para ele, as instituições educativas
corrompem o homem e tiram-lhe a liberdade. Para ele seria preciso educar a
criança de acordo com a Natureza, desenvolvendo progressivamente seus
sentidos e a razão com vistas à liberdade e à capacidade de julgar.
[8] Thomas Hobbes (5 de abril de 1588 — 4 de dezembro de 1679) foi um matemático, teórico político e filósofo inglês, autor de Leviatã (1651) e Do cidadão (1651). Na obra Leviatã, explanou os
seus pontos de vista sobre a natureza humana e sobre a necessidade de um governo e de uma sociedade fortes.
[9] Jacques de Livron Joachin de la Tour de
la Casa Martinez de Pasqually (1727 - 1779) foi um maçom francês. Herdou de seu pai, aos 28 anos, o cargo de Grão-Mestre Delegado,(outorgado pelo Rei Charles
Stuart) com autoridade para levantar templos para o Grande Arquiteto do Universo, anos. Escreveu o livro: Tratado da
Reintegração dos Seres, onde comenta o Pentateuco.
[10] Sun Tzu (544 a.C. - 496 a.C.) foi um general, estrategista e filósofo chinês. Sun Tzu é mais conhecido por sua obra A Arte da Guerra, composta por 13 capítulos de estratégias militares.
[11] Gaston Courtois é um eclesiástico francês nascido em 1897, morreu em 22 de de Setembro de 1970 , Fundador do movimento de corações Valentes.
[12] A xaria, xária, xariá (do árabe sendo
lido como sharīʿah, "legislação"), também erroneamente grafado
sharia, shariah, shari'a ou syariah, é o nome dado ao direito islâmico.
[13] Há uma distinção a fazer entre os
vocábulos “Preboste” e “Juiz”, sendo que o primeiro diz respeito a uma Justiça
Militar e o segundo a uma Justiça civil. O termo preboste nos vem do francês
medieval e designa um magistrado militar existente nos corpos do exército a
quem eram submetidos os delitos perpetrados pelos praças. Era título distribuído
também a outros ramos da administração pública. Origina-se do latim
proepositus, que significa preposto, indicando, à época, o preposto do rei.
[14] Pierre Teilhard de Chardin (1881 —1955) foi um padre jesuíta, teólogo, filósofo e paleontólogo francês que tentou construir uma visão integradora entre ciência e teologia. Através de suas obras, legou para a sua
posteridade uma filosofia que reconcilia a ciência do mundo material com as forças sagradas do divino e sua teologia. Disposto a desfazer o mal entendido
entre a ciência e a religião, conseguiu ser mal visto pelos representantes de
ambas.